Golpe, desmonte de petrolíferas nacionais e submissão dos preços à especulação. Usada no Oriente Médio, tática imperialista está em marcha no Brasil. Recuperar a Petrobrás (e o país) requer ações muito além de “intervenção” demagógica
Um país soberano passa pela autonomia energética, combinando matrizes fósseis e renováveis (como é o caso do Sistema Eletrobrás, que o governo também quer vender). Países que têm problemas nesse quesito entram automaticamente no problema estratégico da segurança energética. Assim, de toda e qualquer maneira um Estado sem acesso a fontes abundantes para ao menos abastecer sua demanda interna (de consumo, residencial, institucional, na infraestrutura e industrial) precisa impor termos de troca, em que jamais fique refém de abastecimento de energia. No caso do petróleo e derivados, quem tem ocupa posição de maior independência no Sistema Internacional e pode desenvolver uma grande indústria de extração de óleo cru, ou fazer uma escolha pela autossuficiência em todas as etapas desta cadeia de valor e produção. O Brasil seria autossuficiente em todos os níveis, caso não sofrêssemos uma gestão entreguista na Petrobrás, iniciada, não por coincidência, após o golpe jurídico-parlamentar com apelido de impeachment, em abril de 2016.
Impressiona também como a história se repete. Em 17 de março de 1951, a empresa que operava como joint venture da British Petroleum (BP), a Anglo Persian Oil Company (APOC) foi nacionalizada pelo parlamento iraniano. O regime, à época, era de monarquia parlamentarista, e a ascensão da Frente Nacional e suas bandeiras de reformas e melhores condições de vida conseguiu criar, no Irã, uma maioria contra a exploração da então principal riqueza do país, apenas pelos ingleses. As instalações da APOC, em especial a emblemática Refinaria de Abadan (ainda hoje a principal do país, ver mais aqui), operavam como “um Estado dentro do Estado”. Após a nacionalização, em 1952, a mão de obra estrangeira e os executivos britânicos deixaram o país. Toda a produção foi nacionalizada e a categoria petroleira iraniana assumiu a infraestrutura instalada e toda a cadeia de valor do petróleo, tanto doméstica como externa.
A história repetida é “simples”. O então 35º primeiro-ministro do Irã, Mohammad Mosaddegh, foi derrubado por um golpe militar articulado pela inteligência dos EUA (CIA) e do Reino Unido (MI6). A “mudança de regime” se deu em agosto de 1953. O Irã deixou de ser uma monarquia parlamentarista para tornar-se um reino absolutista. Além da repressão interna e um sistema de privilégios no acesso às riquezas do país, a APOC ganhou entrada de capital da Golf (depois fundida na Standard Oil), Total, Shell e a própria BP. A produção de petróleo foi elevada e passou a ter seus preços balizados pelo Consórcio Internacional de Petróleo. Desse modo, a cadeia de produção petrolífera iraniana ficou mais barata para exportação e cara, muito cara, para o mercado interno e para o abastecimento nacional. Tal fato só mudou com a revolução popular de 1979.
Com matizes, esse padrão se repete por todo o século XX e, até o presente momento, também no século XXI.
Tudo está em jogo na Petrobrás
O Brasil sofre ataque especulativo todo dia, em todos os níveis. Essa mentalidade dos grandes “traders” internacionais adentrou o Conselho de Administração da Petrobrás e, em parte, de sua cadeia de comando. A categoria petroleira, através de suas entidades sindicais e da engenharia da Petrobrás explica, em detalhes, os porquês da demissão do presidente Roberto Castello Branco e a composição da alta hierarquia da empresa. Na gestão do demitido presidente estão três representantes dos “acionistas minoritários”, incluindo um “gestor de fundos”. Embora seja uma empresa de economia mista e com a maior parte dos votos vinda do Poder Executivo, a cada gesto de soberania ou mesmo de recurso demagógico, os grupos de mídia operam como porta-vozes da especulação financeira que fatura em cima dos contratos futuros e das operações em bolsa. Simples assim.
A composição de preços para o mercado interno é uma das metas-chave da tomada de poder na empresa e também está no cerne do entreguismo de nossa sociedade. Combustível caro não gera popularidade e menos ainda voto. O presidente Jair Bolsonaro, de forma demagógica e atabalhoada (como sempre), “interveio” na companhia, destituindo Castello Branco e emplacando o general (sempre um militar de alta patente; só não sei se defensor da economia nacional) Joaquim Silva e Luna, diretor-geral da parte brasileira na Itaipu Binacional. Se não alterar o desmonte da Petrobrás e o custo para o país rodar com derivados de petróleo, pouco importa quem será o novo presidente. Ainda assim, a “gritaria dos mercadores” foi e segue sendo enorme, a começar pela reclamação dos porta-vozes e da parasitagem financeira pela debandada dos quatro conselheiros.
Segundo O Globo, a “Petrobras perdeu quatro membros do seu Conselho de Administração. João Cox Neto, Nivio Ziviani, Paulo Cesar de Souza e Silva e Omar Carneiro da Cunha pediram para deixar os postos de conselheiros da estatal. Os quatro são indicados pelo governo, o acionista controlador da estatal” (ver aqui). Não por acaso, Omar é ex-presidente da Shell e afirmou para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) o seguinte: “em virtude dos recentes acontecimentos relacionados às alterações na alta administração da Petrobras, e os posicionamentos externados pelo representante maior do acionista controlador da mesma, não me sinto na posição de aceitar a recondução de meu nome como Conselheiro desta renomada empresa, na qual tive o privilégio de servir nos últimos sete meses” (mesmo link anterior). O libelo contra a economia nacional e, por tabela, contra toda atividade produtiva no país, vai além. O mesmo entreguista afirma que: “se manteve aderente às estratégias devidamente aprovadas, e seguindo os mais altos níveis de governança e de conformidade com os estatutos da empresa, e aos mais altos padrões de gestão empresarial”. Por essa “lógica” não haveria nem a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) e, menos ainda, autossuficiência energética em lugar algum. Todo o planeta ainda seria refém das chamadas Sete Irmãs, os maiores conglomerados de petróleo que criaram um oligopólio dominante por meio século!
Sobre a composição de preços para o mercado interno, a mentira é sistemática. Os grupos de mídia afirmam que dependemos dos preços internacionais e sempre colocam gráficos ou indicadores cuja fonte é WTI/EUA, contratos futuros ou índice do Brent. O WTI é o West Texas Intermediate e incide sobre as cotações operadas na Bolsa de Nova York, a partir dos índices de produção do Golfo do México (a região que os gringos insistem em chamar de Golfo do Texas) e a possibilidade de venda futura. O Brent é uma cotação que tem origem no Mar do Norte, em províncias petrolíferas onde havia maior incidência da BP e da Shell. Majoritariamente, o Brent é negociado na Bolsa de Londres.
Esses preços não são em cima de custos de produção, nem nada diretamente relacionado às operações produtivas complexas dessa indústria. Ou seja, são preços estimados a partir da especulação do momento. Tem mais. É fato: o Brasil não refina todo o volume de derivados de petróleo que consome. Mas nenhum veículo de comunicação lembra que a direção entreguista deixa refinarias paradas e ainda vende por preço abaixo do valor, tanto instalações de refino, como importantes subsidiárias, como empresas de gás natural e distribuidoras.
Para piorar, como quem está “comprando” as refinarias a preço de banana não tem obrigação de contrato para reinvestimento, simplesmente pode deixar parada a instalação, comprar petróleo a baixíssimo custo da Península Arábica e colocar os preços absurdos que os “acionistas minoritários” exigem. O preço pago pela refinaria privatizada é coberto com 100 dias de faturamento bruto. Trata-se, simplesmente, do ABC do Entreguismo no Brasil do século XXI.
É preciso retomar o controle da economia brasileira
Nenhum país é soberano se não controla seus ativos estratégicos. Caso seja produtor de petróleo precisa, necessariamente, operar com preços protegidos para o “mercado interno”, ainda mais considerando o fato de sermos absurdamente dependentes do modal rodoviário. Dependemos do diesel para transporte de carga e passageiros, gás de cozinha para consumo doméstico e de gasolina para veículos de passeio. Não há como esperar nada do atual governo e nem daqueles que operaram o entreguismo com a inflação de preços administrados iniciada em 2015, bem como a crise política advinda com o falso moralismo da Lava Jato e a absoluta subordinação do país, a partir do governo ilegítimo de Temer.
Mudar essa correlação de forças vai muito além da urna e precisa passar pela tomada de consciência e organização de quem está na ponta, incluindo o setor de serviços precarizado com o mundo do trabalho “uberizado”. É uma longa jornada, cujo passo primordial é defender as empresas públicas do país como fator de soberania nacional.
Fonte: Outras Palavras