Enquanto a maior cidade do país acorda, Pedro*, 57, percorre ruas do centro de São Paulo numa moto com carroceria acoplada para coletar sacos de lixo recolhidos por garis. É um serviço diário que ele faz há 11 anos — e só parou rapidamente em maio de 2020, durante 15 dias, quando teve covid-19.
Mais de um ano depois de ter se curado da doença, Pedro ainda tem dificuldade para sentir alguns cheiros e sabores, sequela deixada pela infecção do coronavírus. “Fiquei ruim, só que não cheguei a me internar”, explica. “Mas uns 8 amigos daqui morreram com covid”, acrescenta, referindo-se a outros coletores e varredores que, como ele, trabalham naquela região.
Foi no meio da rua onde trabalha — por onde passaram milhares de pessoas todo dia — que o coletor de lixo pegou covid-19, acredita ele. “Quando dá umas 9h, por aqui, tem muita gente passando”, conta o coletor, com rosto quase todo escondido por trás do capacete e, por dentro dele, uma máscara.
Pedro é um dos 17 mil profissionais de limpeza urbana da capital paulista para os quais lockdown e trabalho remoto são expressões sem sentido. Eles fazem parte do chamado grupo de serviço essencial, e, por isso, não podem parar. Mas pararam.
Na última terça-feira (8), esses trabalhadores fizeram uma paralisação de 24 horas para reivindicar a inclusão da categoria na lista de prioridades da vacinação na cidade. Garis, coletores e motoristas de caminhão do lixo chegaram a se reunir em frente à prefeitura de São Paulo, na região central, para pressionar a gestão Ricardo Nunes (MDB), mas não foram atendidos, de acordo com o Siemaco-SP (Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo).
Nem o plano municipal nem o plano estadual de vacinação incluíram o grupo na categoria prioritária de imunização, exceto coletores e profissionais que trabalham com resíduos de saúde na capital. “Eu já me vacinei, porque tenho 57 anos e tomo remédio para pressão alta, mas tem muita gente adoecendo. A gente tinha que ser prioridade”, explica Pedro.
Em nota ao TAB, a prefeitura explicou que a abertura de novos grupos para vacinação depende da chegada de novas doses de vacina, enviadas pelo Ministério da Saúde. Além disso, afirmou não ter sido notificada formalmente sobre a greve e que, “por se tratar de um serviço essencial, foi desrespeitada a lei geral de greve”, que determina “a comunicação com 72 horas de antecedência para qualquer paralisação, além da exigência de que mantenha em operação equipes necessárias para atender à população”.
‘Não somos valorizados’
Antes da pandemia, São Paulo produzia, diariamente, cerca de 20 mil toneladas de lixo. Com as medidas de isolamento social e diminuição do fluxo de pessoas nas ruas, alguns números diminuíram. É o caso da varrição, que em 2020 recolheu 10% menos resíduos em comparação a 2019, como mostrou um levantamento da Amlurb (Autoridade Municipal de Limpeza Urbana) divulgado em abril.
Das 77 mil toneladas do que foi varrido pela capital no ano passado, Joana*, Cristina* e Marina* têm parcela de serviço. Todos os dias, bem próximo a cartões postais da cidade — como o Theatro Municipal e o Viaduto do Chá —, elas já arrastam vassouras no asfalto e na calçada, recolhendo a sujeira.
Às 6h da manhã, numa sexta-feira de 15°C, o trio já descia pelas ruas recolhendo um mundaréu de resíduo jogado e outro tanto espalhado ao longo da noite por quem passou por ali. Fazem isso até 13h, quando encerram o turno.
Joana*, 33, participou do protesto em frente à Prefeitura, na terça-feira. Foi lá reclamar, diz ela, porque, apesar dessa função indispensável que exerce na cidade todo dia, “não somos valorizados”. “Desde que começou a pandemia, a gente espera por isso [pela vacina]”, lembra. “Pelo fato de a gente estar na linha de frente, era para a gente ter sido incluído. Mas não fomos. Deviam ver que a gente tem valor.”
No dia a dia, as pessoas os ignoram. Mesmo com o uniforme laranja, chamativo, passam muitas vezes despercebidos. Só quando param de trabalhar é que de fato são notados, reclama Marina, 63. “Quarta-feira, quando amanheceu, tava um lixarada na rua. Num instante o povo vê como a gente serve”, lembra ela. “Até morador de rua foi mais privilegiado que a gente”, acrescenta, referindo-se à vacinação, sem notar ali, bem ao lado, dois homens que moram numa das calçadas próximas ao Vale do Anhangabaú.
O medo da doença
“Teve a finada Ana, o finado João…”, lista Joana, enquanto caminha varrendo, citando os colegas que ela perdeu nos últimos meses, vítimas da pandemia. “E teve aquela outra… Como é mesmo o nome dela?”, perguntava a uma das companheiras. “Teve muita gente, viu? Muita gente pegou.”
Desde o início da pandemia, 2 mil profissionais da limpeza urbana da cidade de São Paulo tiveram covid-19 — e pelo menos 60 morreram em decorrência da doença, segundo os dados do Siemaco.
O medo de pegar covid-19 está associado também ao de levar a doença para casa. Quando foi contaminada, a gari Marcela temia isso. Foi o que aconteceu: o marido e o filho de 6 anos também adoeceram. Ninguém teve sintomas graves a ponto de se internar, mas precisaram ir algumas vezes ao pronto-socorro para acompanhamento, como ela conta. “Fico preocupada demais, ainda mais vendo os amigos que morreram, né? Se tiver, entro em greve para não morrer mais ninguém.”
O mesmo medo que teve Marina, a mais velha do trio de garis que conversou com TAB. Além de ter mais de 60 anos, o marido dela é diabético. Em março de 2020, ela teve febre e dor no corpo, e foi afastada por 14 dias das suas funções, mas não fez exame para confirmar o diagnóstico.
Nem todo mundo
A paralisação dos varredores, coletores e motoristas de caminhão do lixo de São Paulo, não chegou a dar resultado para os trabalhadores da limpeza urbana. Por isso, a categoria não dispensa a possibilidade de uma outra parada ou até mesmo greve.
Antônio*, 55, já está disposto a parar novamente, se for preciso. Varredor de ruas do bairro de Santa Cecília, também na região central da cidade, ele perdeu a filha de 29 anos por complicações da doença.
Numa das esquinas da Santa Casa de Misericórdia, enquanto esperava o semáforo abrir para a passagem de pedestre, ele se apoiava na vassoura para lamentar a perda da filha — a única que tinha. “Ela já ia receber alta do hospital e teve uma parada cardíaca. Passou 35 dias internada.”
Antônio mora no bairro de Vila Matilde, na zona leste da cidade, e usa o transporte público todos os dias para chegar ao trabalho. O que significa, diz, mais um risco pela exposição. Para ele, não ter a profissão incluída na lista da vacina é inaceitável. “Não tem porquê. Tem cidade no interior que colocou a limpeza urbana para se vacinar. Por que aqui não fizeram isso?”, reclama. É o caso de Poá e São Roque.
Na calçada da rua Amaral Gurgel, enquanto passam os ônibus do corredor, o gari volta a reclamar. “Motoristas de ônibus se vacinaram”, diz. “Professores entraram na vacinação, motorista de ônibus, policial, e a gente não entra.” E segue resmungando.
*A pedido dos entrevistados, os nomes verdadeiros não serão divulgados
Fonte: Tab UOL