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Em alta, desigualdade carece de atenção no país

Em alta, desigualdade carece de atenção no país

Especialistas apontam importância mudanças no sistema tributário para combater desigualdade 

A desigualdade de renda no Brasil cresceu em 2018, a exemplo do que tem acontecido em boa parte do mundo, mas, enquanto a discussão sobre o tema vem ganhando espaço em fóruns globais, na agenda do governo o debate está ausente. O assunto não foi central nas eleições do ano passado e não aparece no discurso oficial dos formuladores de políticas públicas. Para especialistas, debate e iniciativas para tentar resolver a questão precisam ganhar força. A ideia de que programas como Bolsa Família cumprem o papel de combater a desigualdade e a pobreza é verdadeira, mas a redução das disparidades de renda exige que o problema seja tomado como prioridade de Estado, afirmam.

O economista e sociólogo Marcelo Medeiros, um dos maiores especialistas na questão, ressalta a necessidade de a redução das disparidades se transformar em projeto. “Hoje, existe um consenso de que não é uma coisa ou outra que causa desigualdade, mas um conjunto grande de variáveis. Assim, é preciso atacar o problema em muitas frentes. Seria preciso tomar sua diminuição como meta de governo”, diz.

O debate ainda não tem extrapolado para uma agenda prática, afirma Marta Arretche, titular do Departamento de Ciência Política da USP e coordenadora de projetos de pesquisa sobre desigualdade no Centro de Estudos da Metrópole. “Não vejo esse tema com qualquer centralidade no atual governo. Não vejo o presidente da República fazer declarações sobre isso. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ocasionalmente, faz referência ao problema, mas não há consistência entre declarações e medidas. Deveria ser tema central do governo dado nosso elevado e preocupante grau de exclusão.”

O Brasil é um dos países que mais concentram renda no topo da pirâmide social, só perdendo para o Qatar, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, coordenado pelo economista francês Thomas Piketty. O 1% mais rico fica com 28,3% da renda bruta total. Os 10% mais ricos, com 55%, empatando com a Índia. Mais recentemente, a discussão no país foi reforçada pela publicação do elogiado livro “Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil”, do pesquisador Pedro Ferreira do Souza, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e as declarações de economistas de perfil mais liberal como Arminio Fraga, defendendo que a o combate à desigualdade deve ser prioridade entre as políticas públicas.

Lá fora, o tema foi central no Fórum de Davos, em janeiro, e o próprio Nobel de Economia deste ano indicou que a questão está na ordem do dia ao conceder o prêmio a pesquisadores que estudam o combate à pobreza. O tema também tem servido como pano de fundo no debate sobre a ascensão da direita, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria.

Marcelo Medeiros avalia que, no Brasil, houve alguma discussão no Congresso no contexto das reformas da Previdência e tributária, mas esta última, que é uma ferramenta crucial para aproximar os pobres dos ricos, não parece caminhar na direção esperada. As propostas colocadas à mesa até agora não resolvem o problema. “São importantes, mas parciais. É necessário inverter o sistema: tem que tributar muito patrimônio, muita renda e quase nada consumo.”

Com nível tão alto por tanto tempo, a desigualdade tem raízes em todas as partes do tecido social brasileiro e, por isso, não existe bala de prata, diz Sergei Soares, pesquisador e expresidente Ipea, também especialista no tema. Mas combater o sistema tributário regressivo do país deveria estar no topo das prioridades. “Ele recai muito pesadamente sobre tributos indiretos, que são regressivos, e pouco sobre tributos diretos. Tem pouco Imposto de Renda e muito imposto sobre consumo.”

No mais, as ações possíveis para reduzir desigualdade são amplamente conhecidas, diz Soares. O país tem que redobrar esforços na educação, que entrega jovens com formação deficiente, além de repensar o sistema de proteção social que, em sua avaliação, é apenas “levemente progressivo”. “O sistema europeu tira de 10 a 15 pontos do Gini [indicador de desigualdade]. O nosso tira 1 ou 2. E olha que gastamos 15% do PIB nisso”, diz. Gasta-se muito dinheiro com aposentadorias de uma camada mais rica, como os servidores públicos, e com transferências como seguro-desemprego e abono, que se não são regressivas contribuem para diminuir pouco a desigualdade, em sua avaliação. “O que sobra para a progressividade é o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada [BPC, voltado para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência], que são o resíduo do nosso sistema de proteção social”, diz Soares.

Marta Arretche vai na mesma direção e diz que o país já tem um arsenal de políticas, mas há lacunas. A parcela mais vulnerável atualmente são os jovens trabalhadores informais, para os quais não há política. “É uma parcela desprotegida e a proposta do presidente é aproximar cada vez mais o mercado de trabalho formal do informal.”

Se as discussões têm ganhado peso no lado econômico, no lado político, os especialistas são cautelosos em fazer uma relação direta entre aumento da desigualdade e a ameaça à democracia. A desigualdade cria condições para o surgimento de governos plutocratas, já que aumenta o poder do grupo que detém mais renda, o que é precisamente o contrário da ideia de democracia, diz Marcelo Medeiros. “Mas não quer dizer que implica o fim da democracia. São necessários outros fatores para que isso aconteça.”

O mal-estar e a polarização que têm levado a extrema direita ao poder em vários cantos do mundo têm causas diferentes, e análises que colocam todos numa cesta são imprecisas. “Não dá para fazer uma ligação direta entre desigualdade e ameaça à democracia”, diz Marta Arretche. “Há uma reação organizada da direita, que tem uma agenda de retrocesso, mas não dá para simplificar”, afirma a cientista política, acrescentando que nos EUA e no Brasil, por exemplo, os presidentes eleitos caminham para continuar dentro do processo democrático, concorrendo à reeleição. “Se, nos EUA, o que comandou a reação foi o empobrecimento do eleitor de baixa renda, no Brasil, a situação é mais complexa num cenário de devastação do sistema partidário.” O processo muito recente e nem todos os fatores envolvidos foram claramente avaliados, diz ela.

Fonte: Valor Econômico
Link: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/10/18/em-alta-desigualdade-carece-de-atencao-no-pais.ghtml