Para o advogado Eduardo Surian, mudanças na CLT ao longo dos últimos quatro anos debilitaram a Justiça do Trabalho e impuseram cenário catastrófico ao País
Carta Capital – Quando foi aprovada a reforma trabalhista, há pouco mais de quatro anos, a promessa do então governo Temer era de “milhões de empregos” e de desburocratização nas relações patrão-empregado. O que se confirmou com o tempo, entretanto, foi o aumento da informalidade e da precarização das condições de trabalho, pendendo, obviamente, contra o trabalhador. Segundo o IBGE, o Brasil tem atualmente cerca de 14,1 milhões de pessoas em busca de emprego; 7,3% a mais do que no mesmo período do ano passado. Já a taxa de trabalhadores sem carteira assinada chegou, este ano, a 40,8% da população ocupada. Os dados são da última Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), divulgada em setembro.
O advogado trabalhista Eduardo Surian Matias conversou por telefone com CartaCapital sobre as consequências da reforma de 2017 (Lei 13467), e das demais alterações na legislação trabalhista promovidas desde então. Ele alerta que o País tem sido vítima uma agenda neoliberal que impõe um conjunto de mecanismos que impactam de forma fatal a Justiça do Trabalho, mas de uma forma geral toda a economia e sistema de solidariedade da previdência social.
Surian é membro da Rede Lado, que reúne escritórios de advocacia do trabalho para defesa de direitos humanos e sindicais. Para ele, o saldo da reforma trabalhista é “catastrófico” – “Os milhões de empregos, tão falados pelo governo Temer, jamais existiram. As pessoas continuam reclamando verbas rescisórias que não são pagas pelos empregadores. Mais pessoas passaram a viver com contratos precários na relação de emprego, vivendo como PJ, vivendo dos bicos”.
Confira a entrevista:
Carta Capital: Na prática, qual foi o resultado da reforma trabalhista?
Eduardo Surian: Foi avassalador, porque praticamente a CLT inteira foi devastada. Eu diria que o Congresso se aproveitou, sim, disso, mas, fundamentalmente, quem se aproveitou mais foi a elite brasileira, que mistura capital, setores hegemônicos do capital, setores conservadores da Justiça do Trabalho, setores conservadores da própria advocacia, entre outros. E o Judiciário, por meio de um argumento que eu considero tosco, alegou que a reforma era necessária pois havia um excesso no número de reclamações trabalhistas. Ora, a Justiça é feita para ter processo. Se tem muito processo é porque tem muito direito não sendo respeitado. E os números dizem isso.
CC: Quais principais pontos poderiam ser destacados?
ES: Então, sobre essa reforma de 2017 da CLT, durante o governo Temer, é preciso destacar dois aspectos: o primeiro é a total flexibilização do direito do trabalho, a total possibilidade, a quem contrata, de contratar de forma precária. Esse é o primeiro aspecto, e que não começa propriamente ali; vem de antes. As relações estão sendo flexibilizadas desde antes, em várias categorias. Na saúde, na mídia, na advocacia; é difícil você encontrar um jornalista que não seja PJ (Pessoa Jurídica). Na maior parte das vezes, todos são contratados através de suas empresas. Os ‘empreendimentos de uma pessoa só’.
O segundo aspecto que quero destacar é o argumento de que há um excesso de reclamações. A partir disso, o que a lei fez? Encareceu o custo das reclamações; estabeleceu a possibilidade de condenação em sucumbência da parte perdedora nas ações. Isso, evidentemente, para aquela pessoa que ganha menos de 1.900 reais, que é a grande maioria dos reclamantes, é um grande risco. Com a reforma, deixa-se de reconhecer a Justiça gratuita para pessoas pobres. E só agora, depois de quatro anos, o Supremo disse que essa medida é inconstitucional. Então, muitos cidadãos nesse período deixaram de reclamar seus direitos pelo temor de ingressar com uma ação judicial.
Depois do segundo ano da lei, inclusive, registrou-se uma queda no número de ações trabalhistas e muita gente comemorou isso como um grande feito da reforma, e não como um retrocesso
CC: A flexibilidade do empregador é apontada como uma das vantagens da reforma.
ES: Na verdade, o ‘grande feito’ da reforma trabalhista foi o aumento do desemprego e a volta da fome. Alguns setores conseguiram flexibilizar as relações e as contratações, mas eu pergunto: o que isso traz de crescimento? A reforma trabalhista, nesses quatro anos, não trouxe crescimento ao País. Os milhões de empregos, tão falados pelo governo Temer, jamais existiram. As pessoas continuam reclamando verbas rescisórias que não são pagas pelos empregadores. Mais pessoas passaram a viver com contratos precários na relação de emprego, vivendo como PJ, vivendo dos bicos. Em um país no qual a fome sempre foi uma realidade, com a reforma mais pessoas passaram a encontrar o desemprego e a fome. No fim, esse é o balanço que temos de quatro anos da reforma trabalhista. E se imaginarmos que o futuro nos fala que devemos continuar flexibilizando, precarizando relações, o quadro somente tende a piorar. Não é muito diferente do que aconteceu nos Estados Unidos, diante de tamanha flexibilização nas relações de trabalho. Em várias cidades, a fome está presente nas ruas. A falta de emprego é uma realidade. É um cenário catastrófico.
CC: E isso gera um impacto negativo no futuro previdenciário do País?
ES: Tem essa situação também. Depois da reforma trabalhista, o País passou por uma reforma previdenciária. E uma reforma não inclusiva. O modelo de Previdência que sempre foi praticado no Brasil, previsto na Constituição, era o modelo de Previdência solidária. Contribuo para a Previdência a fim de garantir a aposentadoria das pessoas no momento seguinte. Hoje o convite para você estar dentro da Previdência Social é praticamente zero. O que domina é a precarização, as contratações em que o campo formal deixa de existir. Os números mostram a expansão do ‘mercado informal’ e o nosso ministro da Economia comemora a criação de empregos informais. Então, evidentemente que o crescimento da informalidade vai levar a uma diminuição da Previdência Social. Isso sem dúvida afeta os mais jovens, afeta as pessoas que estão no meio desse transcurso de vida, com 30, 40 anos. Um dia eles vão se aposentar. E vai haver dinheiro para isso? Estamos fazendo um país de pobres, de famintos.
CC: E quanto ao impacto nos sindicatos?
ES: Outro ponto importante de salientar é que um dos grandes motes da reforma trabalhista é ‘cortar as pernas’ do movimento sindical. O movimento sindical brasileiro ressurgiu muito forte nas décadas de 1980 e 1990 e, com as centrais sindicais, passou a ser muito atuante. No século XXI, há um envelhecimento e uma desconexão das lideranças sindicais com a juventude, mas ainda é um movimento sindical forte, que pode buscar renovação, porque o conflito capital/trabalho não é arquivado, não é esquecido. Porém, esse movimento sindical, quando tem sua fonte de custeio apagada – essa é a expressão – pela reforma trabalhista, enfraquece muito; e a resistência contra tudo isso perde um grande aliado, que são os sindicatos. Ou seja, existe uma agenda neoliberal que impõe um conjunto de mecanismos.
CC: E qual é o cenário para a Justiça do Trabalho frente a essa situação?
ES: E o País apresenta um quadro recessivo desde o governo Temer, com desmonte do Estado, desestruturação da prestação de serviço. E isso é bem caótico. É notório que um dos eixos da manutenção dessa relação e desse conflito capital/trabalho sempre foi o uso da Justiça do Trabalho em favor dos interesses do capital. Da década de 1940 até o ano 2000 a Justiça do Trabalho teve um papel de anteparo e freio das condições de equilíbrio em relação aos trabalhadores contra o capital. Sempre o capital se garantia, de certa forma, porque tinha a Justiça do Trabalho como seu amortecedor; segurava conflitos. O direito de greve diversas vezes foi proibido por meio da Justiça do Trabalho.
Mas no século XXI, o capital, os setores hegemônicos do Brasil, estão com claro comportamento de que a Justiça do Trabalho já não é mais necessária. E o fim da Justiça do Trabalho é algo que está aí. Só quem não enxerga é a própria Justiça do Trabalho; alguns membros da Justiça do Trabalho, que contribuem para o seu próprio fim, numa atitude meio suicida. Por exemplo, quando aceitam e aplicam regras inconstitucionais. Como tem acontecido nesses últimos quatro anos. A reforma trabalhista é inundada de inconstitucionalidades. E o movimento do Judiciário, na sua lentidão, em certa convivência com a legislação que atende os setores do capital nacional, traz uma situação muito complicada.
CC – Como a OAB deve olhar para a advocacia trabalhista?
ES – A grande questão do advogado trabalhista não é somente o dia a dia no fórum ou o relacionamento com a Justiça do Trabalho. É preciso ver o posicionamento efetivo de quem pretende dirigir a OAB em relação a tudo isso que a gente conversou até aqui. Qual a posição da Ordem em relação a esse projeto de destruição da condição de emprego no Brasil? Qual é a posição da Ordem em relação a esse projeto neoliberal que precariza as relações? Se 38% dos eleitores advogados estão na área trabalhista, a Ordem precisa, então, dialogar sobre o que tem afetado essa parcela da advocacia. A reforma trabalhista coloca o advogado trabalhista como vilão. Se consideram que tem ‘excesso de processo judicial’, como justificaram alguns à época da reforma, é sinal de que consideram que tem excesso de advogado e do trabalho de advogado trabalhista. Quando na verdade, o excesso de processo é sinal de que o sistema não está funcionando.
CC- Existem meios dentro do Judiciário para frear essa marcha de desmonte da Justiça do Trabalho?
ES – No Brasil, sempre tivemos uma magistratura atuante, reconhecedora dos direitos, uma magistratura que não atendia aos anseios do capital pura e simplesmente. E essa Justiça precisa agir. Nas mãos dessa Justiça passam os milhares de casos em que ela se debruça, sabendo que as pessoas estão batendo à sua porta para reclamar rescisão de contrato, verbas não pagas de uma rescisão contratual. Milhares de pessoas vão à Justiça do Trabalho para falar que o emprego delas é uma relação fictícia, através de uma Pessoa Jurídica que não existe. Então, enquanto Judiciário, a Justiça do Trabalho tem de ter o papel de efetivamente condenar empresas, reconhecer direitos. E enquanto sociedade, o grande papel das organizações da sociedade civil é mostrar o desmonte que está acontecendo do Estado brasileiro.
CC – Antes de encerrarmos, como você avalia a situação dos entregadores de aplicativos?
ES – As empresas de aplicativo, esse mundo que forma riqueza pela exploração do trabalho dos outros, por meio dos aplicativos, precisa da destruição das condições e das ofertas de trabalho para atuar. O trabalhador não tem mais opção. Ou vai ser motorista de Uber, entregador do Ifood, ou vai viver na mendicância. E a pandemia agravou isso. O que é o centro de São Paulo hoje? O reflexo do desemprego, da fome, da economia que, em certos aspectos, paro. Para onde a população foi? Em São Paulo, antes da pandemia, tínhamos 24 mil pessoas em situação de rua. Hoje, segundo o Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, são 66 mil. E esse quadro se repete em todo o Brasil.
Portanto, essa situação que a gente pode qualificar como uberização, e que é uma situação que passa a ser olhada como uma forma de manutenção das relações de trabalho, é mais um reflexo desse plano macabro de transformar as pessoas em objeto. Nos aplicativos, as pessoas são números, sem rosto, pele e osso. E, em parte, esse tipo de atividade, para alguns setores, dentro desse plano macabro, é temporário. Num passo seguinte, temos a robotização, a inteligência artificial, a tecnologia. Esse segmento já existe. E isso vai precarizando cada vez mais as relações, vai pauperizando cada vez mais as relações. A tecnologia traz, hoje, para o Brasil o retrato da pauperização.
CC – O que acha do projeto sobre direitos dos entregadores na pandemia, que, após 20 meses de tramitação, foi aprovado pela Câmara?
ES – Regras e condições temporárias que são paliativas; um curativo para, em determinado momento, atender uma situação pontual. Passamos quase 24 meses desde o início da pandemia. Imagina a quantidade de trabalhadores que adoeceram ou que perderam a vida nesse período, sem a devida assistência. Agora, já foi.