O governo federal criou um programa que dá desconto na conta de luz para famílias e empresas que conseguirem economizar energia até o final do ano, em meio ao risco de racionamento e até de apagão, durante a maior crise hídrica no país em cerca de 90 anos. O desconto virá de uma só vez, na primeira conta de luz recebida após o cálculo do consumo referente ao mês de dezembro de 2021. Ou seja, em janeiro ou fevereiro de 2022.
O dinheiro para bancar esses descontos, porém, virá do bolso dos próprios consumidores de energia, incluindo aqueles que ganharão o abatimento. Isso porque o que vai pagar o rombo causado pelo desconto é uma taxa cobrada indiretamente na conta de luz de todos.
Se por um lado o consumidor está recebendo, por outro, ele vai pagar. Certamente haverá um aumento de custo, uma despesa que não estava prevista e será repassada via ESS.
Ana Carla Petti, presidente da consultoria MegaWhat
O UOL procurou o Ministério de Minas e Energia, que não quis comentar. A reportagem também questionou a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) que não respondeu.
Encargo entra no reajuste anual das tarifas
De acordo com a resolução que criou o programa de descontos, os valores virão do Encargos de Serviços de Sistema (ESS), uma taxa variável que já incide na conta de luz, com o objetivo de compensar custos extras do sistema de energia.
Por exemplo, se uma falha de transmissão obriga o operador do sistema (ONS) a acionar uma usina termelétrica, mais cara, para suprir a demanda de certa região. O custo dessa energia é cobrado das distribuidoras, que recebem a fatura na forma do ESS.
O consumidor não vai encontrar qualquer menção a esse encargo na sua conta de luz, porque ele não vem detalhado como uma taxa à parte.
Mas o ESS é levado em conta quando a Aneel autoriza as distribuidoras a reajustar suas tarifas, todos os anos. Quanto maior o ESS, maior o reajuste de tarifas.
Assim, quanto mais descontos os consumidores conseguirem ao poupar energia, maior será o encargo cobrado a partir de janeiro de 2022. A data do reajuste das tarifas varia conforme a distribuidora.
Taxa também banca desconto para as indústrias
O ESS também vai custear o programa de redução voluntária de energia para grandes empresas (principalmente indústrias) que compram energia no chamado mercado livre. Essas empresas não pagam conta de luz como consumidores comuns, pois compram energia em grande escala.
No mercado livre, o repasse virá mais depressa, pois o encargo é computado mensalmente pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). Como o ESS impacta o preço da eletricidade em todo o sistema, o custo do programa para as indústrias afeta as distribuidoras e, indiretamente, também o consumidor residencial.
‘Não há alternativa melhor’, dizem especialistas
Petti, da MegaWhat, afirma que qualquer programa de desconto seria bancado pelos próprios consumidores em alguma medida.
“As alternativas seriam alocar essa despesa em um outro encargo ou como despesa do Tesouro Nacional. Nesse caso, o dinheiro viria dos contribuintes, que também são consumidores, e ainda precisaria de previsão na Lei Orçamentária”, diz.
João Sanches, diretor da consultoria Trinity Energia, diz que o ESS existe justamente para garantir a manutenção do sistema em situações excepcionais como a atual, e que o governo pode usar o encargo para bancar os programas.
Não há alternativa melhor. É a forma que o governo encontrou para incentivar a redução do consumo.
João Sanches, diretor da consultoria Trinity Energia
Bandeira subiu 50%, mas ainda não cobre custo mais alto
As contas de luz já estão mais caras por causa das bandeiras tarifárias, que cobram uma taxa extra mensal dos consumidores quando o custo da energia sobe. É o que está acontecendo agora, com o baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas e o acionamento das usinas termelétricas.
Até agosto de 2021, a Aneel tinha um sistema de bandeira com quatro níveis: verde, amarela, vermelha patamar 1 e vermelha patamar 2.
Como a seca foi pior do que o esperado, o governo teve de acionar ainda mais termelétricas e importar mais energia de vizinhos —o que elevou o custo da eletricidade.
Para bancar esse custo, foi criada a bandeira de escassez hídrica, 50% mais cara do que a vermelha patamar 2. Com ela, as distribuidoras passaram a cobrar em setembro R$ 14,20 para cada 100 kWh consumidos. Essa cobrança deve permanecer, pelo menos, até abril de 2022.
Porém, segundo cálculos da consultoria MegaWhat, a bandeira de escassez hídrica é insuficiente para cobrir todos os custos, deixando um rombo de R$ 5 bilhões.
Isso significa que as distribuidoras estão pagando mais caro para comprar energia, mas não conseguem repassar imediatamente todo o custo aos consumidores.
Com o aumento do ESS por causa dos programas de desconto, a defasagem ficará ainda maior. Esses custos serão repassados ao consumidor no reajuste da tarifa e, possivelmente, podem fazer a bandeira de escassez hídrica incidir na conta de luz por mais tempo.
Fonte: UOL