Com 1,3 milhão de pedidos ao INSS sem análise há mais de 45 dias, prazo legal para uma resposta, o governo anunciou o plano de contratar ou convocar até 7.000 militares de reserva para trabalhar no atendimento nas agências, liberando servidores para análise de pedidos.
Para Adriane Bramante, presidente do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), a contratação de militares temporariamente será um investimento inútil, porque o problema do INSS é estrutural. Ela afirma que Previdência é um assunto complexo e, mesmo para o atendimento, é necessário um treinamento adequado.
“É muito complicado. Para ter uma ideia, a instrução normativa do INSS tem 700 artigos. Como é que ensina, treina essas pessoas? Alguém que foi treinado para a segurança do país, para cuidar de milícias e de guerra. Eles não foram treinados para isso”, afirma.
Ela defende a contratação de mais servidores para atualizar na análise de pedidos, além de mais treinamento e mudanças no sistema de concessão como um todo, para acelerar os processos.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
UOL – Faz sentido contratar militares para reduzir a fila, como o governo anunciou?
Adriane Bramante – Não, de forma alguma. Vai ser um investimento inútil. Primeiro tem que treinar esse militar, que não sabe nada de atender pessoas. E terá de atender questões previdenciárias, que são extremamente complexas. Treinar esse pessoal temporariamente para depois não aproveitar essa formação vai ser um gasto de dinheiro inútil.
O Brasil tem hoje 12 milhões de pessoas desempregadas. Por que não contratam civis? Já que vai ter que treinar alguém, que treine pessoas que estão desempregadas, não o militar, que está na reserva, que tem dinheiro, tem salário.
Faz uma seleção, um contrato temporário. A Previdência já fez isso no passado, quando contratou, nos idos de 1996, 1997.
A questão da fila não é de hoje. Sempre houve fila, seja virtual ou presencial. Então não é contratando 7.000 militares que o problema da Previdência será resolvido.
O governo afirma que os militares atuarão no atendimento ao público, um trabalho que demanda menos conhecimento específico do que a análise de pedidos.
Já imaginou colocar militares para escanear processo? Vai pagar R$ 2.000, R$ 3.000, para escanear processo e atender as pessoas na fila?
Além disso, 10% do atendimento da Previdência é presencial. Isso o próprio governo disse.
O maior número de processos [na fila] é questão técnica, operacional.
Colocar esses militares para atender as pessoas que chegam? Estamos falando de segurados que mal sabem o que querem. Eles não sabem o que querem pedir de informação. Às vezes temos que adivinhar qual é o pedido, porque ele não sabe dizer o que precisa.
Tem que conhecer a matéria para poder dar a informação. A pessoa pode receber uma informação errada, que pode levar a um prejuízo futuro para ela. As consequências podem ser desastrosas.
É muito complicado. Para ter uma ideia, a instrução normativa do INSS tem 700 artigos. Como é que ensina, treina essas pessoas? Alguém que foi treinado para a segurança do país, para cuidar de milícias e de guerra. Eles não foram treinados para isso.
É possível que a situação seja normalizada em seis meses, como diz o governo?
Não, claro que não. Porque o problema da Previdência é sistêmico. Não é resolver um estoque de 1,9 milhão de processos.
O problema da Previdência não é só esse. Se fosse, resolveria talvez em três, quatro meses. Mas o problema é muito maior, de sistema.
A Previdência foi modificada. Nós tivemos uma reforma extremamente ampla, estrutural, que mexeu muito com os benefícios previdenciários, com o cálculo, e o sistema da Previdência ainda não está adaptado a isso.
Então não adianta colocar 7.000 militares e colocar mais servidores lá dentro para analisarem os processos, porque não tem sistema ainda operando de acordo com a reforma. Todos os requerimentos estão parados desde novembro de 2019.
A automatização dos processos que o INSS está implantando não diminuiria a necessidade de servidores e aumentaria o fluxo de processos analisados?
Se eles acreditassem no sistema deles, pode ser que sim. Essa questão da automatização dos processos podia estar bem melhor. O problema é que o INSS não confia no próprio sistema.
Por exemplo: se você entrar no sistema do INSS e ele apresentar que você tem 35 anos de tempo de contribuição, que pode se aposentar, concorda que não precisaria do humano para conceder o benefício? Você vai apertar o botão e o benefício está na sua casa daqui a 30 dias.
Só que não é assim que funciona. Se ele precisa que você faça o requerimento, junte as carteiras, então tem que ter o humano para conferir tudo certinho o que está no sistema, para que conceda o benefício.
Questões que são pouco questionáveis, por exemplo o salário-maternidade e a aposentadoria por idade, já estão mais automatizadas. Mas outros benefícios, não. Precisa de mais tempo para que isso seja realmente mais eficiente.
O secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho falou que foi essa digitalização dos pedidos, feita no governo anterior, que levou ao aumento da fila. Isso foi realizado apressadamente?
Foi. A digitalização tinha que acontecer, é uma tendência. Mas acho que a Previdência ainda não estava preparada para isso.
Existem agências do INSS com internet de baixa velocidade, sem scanner ou com scanner ruim. Na agência em que trabalho, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) teve que doar um HD externo, porque a agência não tinha um para salvar os arquivos. Para ter uma ideia da fragilidade e da falta de condições para o INSS digital.
Para tirar as pessoas da fila e jogar em uma nuvem, precisa de treinamento, de sistema operando, de internet. A Previdência não estava preparada.
Um dos motivos desse boom de requerimentos é justamente esse. Quando as pessoas iam para a agência física do INSS, os processos entravam das 7h às 17h. Com o digital, elas começaram a protocolar benefícios 24 horas por dia, sete dias da semana. E o INSS não dá conta da demanda.
O secretário Marinho falou que o ano passado foi o mais produtivo do INSS, em número de análises.
Sim, porque foi o maior número de requerimentos. Foi produtivo porque teve mês que entraram 950 mil processos, em outros, 800 mil. Então havia uma demanda muito grande de análise.
Agora, concluir o processo é uma coisa, analisar corretamente é outra. Estamos falando de quantidade versus qualidade.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região publicou um aumento de 284% de mandados de segurança na Justiça pela demora na análise dos processos.
Temos um número absurdo de processos em recurso, e o número de processos judiciais aumentando a cada ano.
Então, não é apenas concluindo a análise que o processo está resolvido. Se é feito com baixa qualidade, joga o problema para outro lugar.
Então grande parte desses processos está sendo mal analisada, por isso tantos recursos?
Muito, muito. [Analisados] de qualquer jeito.
Por exemplo, nos últimos 30 dias recebi pelo menos umas 20 exigências para levar documentos autenticados [ao INSS]. Mas não há um decreto dizendo que não tem que autenticar documentos, se o INSS tem condições de averiguar aquelas informações?
A gente juntou documentos autenticados e, mesmo assim, o INSS está exigindo de novo que eu leve o documento.
Então temos exigências desnecessárias, exigências absurdas, análises esdrúxulas e indeferimentos errados.
O que estão fazendo? Tirando o problema de um lugar, que é a agência da Previdência, e jogando para outros, a Justiça ou o Conselho de Recursos.
E qual seria a solução para os problemas do INSS?
Não é uma solução apenas, temos que atacar em vários pontos.
Tem que ter um sistema adequado, operando com eficiência, que realmente responda aquilo que o servidor precisa.
Temos que treinar os servidores. A reforma saiu, e nenhum servidor foi treinado para dar informação sobre ela. Eles não sabem o conteúdo da reforma, não sabem o que foi aprovado. Não vão saber dar informação. Não receberam treinamento para isso.
Também precisa contratar pessoas imediatamente para atender à demanda. Estamos falando de 2 milhões de processos parados.
Precisa abrir concurso, que é uma questão antiga. E depois que muitos servidores se aposentaram no ano passado ficou muito pior.
Os que ficaram não estão aguentando. Eles estão sendo extremamente atacados, sobrecarregados, estressados. Estão no limite da paciência. Porque tudo está sendo jogado na mão deles.
Faltou planejamento na adequação do sistema do INSS para as mudanças provocadas pela reforma da Previdência, ou era inevitável, por ser uma alteração muito grande?
Desde 2016 que a gente sabia que iria ter reforma. Seja a reforma do Temer, a reforma do Bolsonaro, do governo que fosse.
Essa reforma foi apresentada em fevereiro. Já era para ter começado a mexer no sistema. “Ah, mas precisava aprovar a reforma”. Está bem. A reforma foi publicada em novembro, mas aprovada em outubro. Eles tiveram mais tempo para poder atualizar o sistema.
Eles sabiam que os servidores se aposentariam em 2019. Foi anunciado aos quatro ventos. Todo mundo sabia. E não foi feito nada.
O que falta na Previdência é alguém que realmente traga um planejamento estrutural. Precisa ter uma reforma estrutural, de gestão, de sistema, de pessoal.
Hoje temos o caos. Ninguém está preocupado com o segurado. O segurado está lá na ponta, precisando do benefício, e ninguém fala dele.
Tenho uma cliente cujo marido morreu. Ela tem que pagar um plano de saúde e faz dois meses que não tem dinheiro. Está vivendo pegando empréstimos. E é assim para milhares de pessoas.
É previsto que haja aumento da judicialização com as mudanças propostas pela reforma da Previdência?
Não tenho dúvida. No ano passado o INSS apresentou um projeto de desjudicialização, junto com o STJ (Superior Tribunal de Justiça). Porque isso custa caro para o Brasil. É custo de processo, de pessoal, de sucumbência, de juros, de multa.
Só que eles não param de dar causa para essa judicialização. Seria mais barato se fizessem o concurso ou contratassem pessoas como CLT. Eles podem contratar. Contratem pessoas para que possam trabalhar e enfrentar isso de uma vez por todas.
Especialistas já falam na possibilidade de uma nova reforma daqui a 20 anos. Como a senhora vê essa perspectiva?
Não estou nem falando de 20 anos. A gente tem uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) paralela que está na Câmara, que também vai mudar mais um monte de coisas.
A Previdência tem que acompanhar a evolução social, então isso é uma tendência.
O que as pessoas precisam fazer hoje é ter um pouco mais de educação financeira. Porque a geração que hoje está aposentada vive unicamente da Previdência. Não tem outra fonte de renda.
A geração nova, de jovens, não vai depender só da Previdência. É isso que eles precisam entender. A Previdência tem que fazer parte da renda da velhice, mas ela não pode ser a única.
Até porque essa reforma foi tão extensa e tão dura, que os jovens não querem mais pagar Previdência.
Se analisarmos o mercado de trabalho, com a uberização, temos visto pessoas ou na informalidade, portanto desprotegidas e que não estão nem aí com Previdência, ou cadastradas no MEI (Microempreendedor Individual).
Ontem atendi um cliente que disse: “Doutora, a minha empresa vai me mandar embora. Já está tudo certo. Vou receber as verbas, abrir uma inscrição no MEI e prestar serviço para ela”.
Isso já está acontecendo. As pessoas vão se desligar das empresas. Não vai mais existir empregado.
O que vai existir é o MEI, porque é uma proteção barata. Falo que é o R$ 1,99 previdenciário. Você paga 50 e poucos reais, tem benefícios e garante um salário mínimo.
Daqui a vinte anos, quando essa reforma vier, será outro cenário de segurados que vão receber Previdência. Ela será de salário mínimo.
Fonte: UOL
Link: Militar foi treinado para a guerra