Central dos Sindicatos Brasileiros

Revendedoras de cosmético expõem trabalho precário

Revendedoras de cosmético expõem trabalho precário

Trabalhadoras não são protegidas pelas leis trabalhistas. No mundo são cerca de 95 milhões de revendedoras. A Natura tem 1,3 milhão de revendedoras

O trabalho é confundido com o consumo. Riscos e custos são dispersos. Precariedade, instabilidade, falta de reconhecimento. Assim vivem as revendedoras de cosméticos, de acordo com o estudo realizado pela cientista social Ludmila Abílio, professora da PUC de Campinas.

Sua tese de doutorado, que sai agora no livro “Sem Maquiagem, o Trabalho de Um Milhão de Revendedoras de Cosméticos”, é centrada no caso da Natura e mostra o crescimento exponencial desse mercado.

“As pessoas estão cada vez mais aderindo ao trabalho, dentro e fora de seu próprio local de trabalho. A perda de limites do trabalho vai permeando a nossa vida, o nosso tempo livre. Há várias formas de trabalho que não estão sendo chamadas de trabalho”, diz Ludmila, 36, nesta entrevista.

Para ela, “a viração constitui a própria classe trabalhadora brasileira”, que sobrevive misturando empreendedorismo e múltiplas trajetórias profissionais. “A viração é extremamente produtiva. Não se trata de uma população descartável, que, se desaparecer ou parar, não fará diferença. É o contrário”, afirma.

Folha – Como a sra. avalia o sistema de vendas diretas? Ludmila Costhek Abílio – É um fenômeno mundial, histórico, de grandes empresas, como a Avon. Cada país tem sua regulamentação e as companhias agem dentro da legalidade. O setor tem um crescimento exponencial. No mundo são cerca de 95 milhões de revendedoras. A Natura tem 1,3 milhão de revendedoras. Quando comecei a pesquisa, em 2007, eram 400 mil.

No livro, a sra. mostra que há revendedoras de diferentes classes sociais e que, no Brasil, nos últimos anos, cresceu o contingente de vendedoras entre as mais pobres, as faxineiras. Por quê? No sistema de venda direta não há vínculo empregatício, exclusividade, horário e local de trabalho. Com facilidade essa ocupação se mistura com o próprio consumo. Como revendedora da Natura se ganha 30% de desconto, que é a comissão. Há uma série de mecanismos que acabam enredando a consumidora em busca de desconto com a revenda. Há uma pontuação mínima [de compras]. Mais itens são comprados, começa a revenda, sem que isso tenha uma cara de trabalho.

O aumento no número de revendedoras tem a ver com o consumo maior nas classes mais pobres nos últimos anos? O setor de higiene e cosméticos cresceu quase 500% nos anos do governo Lula. As pessoas não só estão consumindo mais, mas também estão trabalhando mais para ter acesso a esse consumo. Mas não é só isso. As pessoas estão cada vez mais aderindo ao trabalho, dentro e fora de seu próprio local de trabalho. A perda de limites do trabalho vai permeando a nossa vida, o nosso tempo livre. Há várias formas de trabalho que não estão sendo chamadas de trabalho.

Historicamente, isso está relacionado com a queda das remunerações dentro de um horizonte mais longo? Tem a ver com a remuneração e com as restruturações do trabalho, que foram eliminando as distinções entre tempo livre, de trabalho e de consumo. Hoje, se se quer viajar, se gasta um tempo na internet. Isso aparece como um serviço, mas se está desempenhando atividades que antes eram de outro trabalhador. Não sei como se chama essa atividade que toma um tempo. Não é lazer e se torna banal. Não a vivenciamos como trabalho, mas, em algum lugar, aquilo se traduz em economia de custos do trabalho.

A sra. aponta que, em muitos casos, as revendedoras não sabem quantificar o seu trabalho e nem os seus ganhos reais, que parecem pequenos. Por quê? As empresas fazem o discurso do empreendedorismo, com variações. Às vezes a revenda é uma ação que pode se fazer com amigas. Em outras, se fala de metas, de foco para os ganhos. Essa atividade é o emblema da flexibilidade. Mulheres que estão querendo consumir a identificam como uma forma de ganhar renda extra.

Muitas começam a consumir e se envolvem no trabalho da venda. Chegam a dizer que têm prejuízo, ou que não têm lucro nenhum, que não sabem quanto ganham, que têm muitos produtos em casa –que acabam dando de presente. Na outra ponta, estão mulheres que fazem disso uma atividade de geração de renda, sua ocupação principal. Aí é mais chocante a falta de reconhecimento desse trabalho.

A sra. pode dar exemplos? Conto no livro o caso de uma mulher de 60 anos. Há 30 anos, ela trabalhava como datilógrafa de uma editora e começou a revender Natura. O rendimento que obtinha nas revendas era maior do que o do emprego fixo. Ela largou o posto e passou a viver de revenda: saia vendendo na rua, de segunda a sábado, oito horas por dia. Mas hoje, com o estouro da concorrência, ela não sabe mais o que fazer. Há situações muito variadas. Mulheres que vendem os produtos em seu local de trabalho –uma escola ou uma delegacia. Falei com uma professora que disse que não era revendedora, que aquilo era só um passatempo, um jeito de consumir. Não queria associar sua identidade à de uma revendedora. No fundo, estão todas trabalhando.

A sra. diz no livro que o modelo de negócios da Natura repassa para as revendedoras os riscos de inadimplência, os custos de estoque, instalações e trabalho de promoção. É possível quantificar tudo isso? Essa impossibilidade de precisar as coisas é o que dá relevância a essa atividade. Isso vai ser sempre indefinível, porque está espraiado pela vida de cada mulher. É difícil quantificar o quanto a Natura ganha com propaganda não paga na escola, na delegacia, no banco, na festa de Natal. Riscos são transferidos de dentro da empresa para esse um milhão de mulheres de forma totalmente dispersa. Mas na fábrica se enxerga como essa atividade de um milhão de mulheres se traduz em informação, que determina o ritmo de produção. A informalidade da venda na festa do trabalho vira informação preciosa para o funcionamento da fábrica.

As mulheres estão amarradas à empresa via algo muito formal, que é o boleto bancário [da compra de produtos]. Isso obscurece que é um trabalho; fica como compra. Se o boleto não for pago, o nome da revendedora fica sujo, os juros são altos. A relação que ela faz com os clientes é altamente informal; ela corre o risco de inadimplência. Uma revendedora que trabalha em escola me contou que sua dívida com a Natura, por causa de uma cliente que não pagou, equivalia a um mês de seu salário.

Nesse modelo não há questões trabalhistas? Elas não têm direitos trabalhistas, não são empregadas. O argumento do outro lado é que elas vendem como e quando quiserem. Juridicamente está tudo muito claro. Mas tem uma injustiça. O legal nem sempre é o justo.

A sra. conta que entrevistou 25 revendedoras. Não é muito pouco para um universo de mais de um milhão? Não acho. Aprendi que existe um certo fetiche da quantificação. As entrevistas que fiz trataram de questões centrais. Foram mais do que suficientes. Parei de fazê-las quando elas começaram a se repetir. Entendi o padrão. Utilizei relatos de outras pessoas, fiz pesquisas diversas.

A dinâmica do mercado de trabalho no Brasil mudou? Cresceu o trabalho formal –e isso é muito bom. Mas as formas de intensificação, de precarização, de tensão de tempo estão perpassando também o trabalho formal. O cerne do mundo do trabalho é a organização através da dispersão: dispersão das cadeiras produtivas, da produção de carros. Tudo está disperso, difícil de mapear, de reconhecer. As categorias profissionais vão ficando cada vez mais fragmentadas. No caso das revendedoras, elas estão em toda parte, mas a atividade não aparece como trabalho. A injustiça atravessa o trabalho delas.

Qual é o seu próximo trabalho? Agora estou fazendo pesquisa com os motoboys. Sem esse trabalhador precário as coisas não fluem no Brasil. São documentos, mercadorias que eles fazem circular. É o precário e o moderno.

A sra. escreve que a “viração” faz parte do trabalho hoje. Como isso acontece? A “viração” constitui a própria classe trabalhadora brasileira. As trajetórias profissionais dos trabalhadores de baixa renda, que exercem funções mais precárias, são feitas de viração. É o pedreiro que vira marceneiro, que vai trabalhar na loja do cunhado, que vira feirante. Vai de trabalho em trabalho, aproveitando oportunidades.

Ao mesmo tempo, quase morre por causa da polícia, seu filho é assinado. São várias precariedades que tornam a vida uma eterna instabilidade, um eterno movimento pela sobrevivência. É uma nova classe média “viradora”. Empreendedora, pulando de trabalho em trabalho. No caso do motoboy isso é muito impressionante.

Pergunto o que eles fizeram antes. Foram açougueiros, montadores de sapato, não há trajetória definida. O mundo do trabalho é feito de sobrevivência. A “viração” é extremamente produtiva. Não se trata de uma população descartável, desempregada, que, se desaparecer ou parar, não fará diferença. É o contrário. Essa condição de eterno risco de ser descartado mobiliza e torna produtiva a classe trabalhadora, em formas que mal são reconhecidas.

Outro lado

A Natura afirma, em resposta à Folha, que a relação com seus consultores (revendedores) é “de natureza comercial, não exclusiva, em um modelo de negócios existente há mais de 50 anos no Brasil, e que a venda direta proporciona autonomia e complemento de renda a 2,8 milhões de brasileiros”.

Procurada, a empresa responde que “acredita na força transformadora das relações e no poder da cosmética como meio de conexão com o próprio corpo, com o outro e com a natureza”.

A empresa diz que, orientada “por essa crença”, busca negócios socialmente justos, ambientalmente corretos e economicamente viáveis para sua rede de relações. Fazem parte dessa rede 1,6 milhão de consultores no Brasil e no exterior, acrescenta.

A Natura informa ainda que oferece a seus consultores acesso a cursos de capacitação e aprendizado, ferramentas que funcionam para o aprendizado de gestão e o lançamento de iniciativas empreendedoras.

“Nossos consultores também recebem apoio técnico e financeiro para a realização de ações sociais em suas comunidades, por meio do Movimento Natura, plataforma que conecta iniciativas transformadoras com pessoas dispostas a colaborar com elas, ao estimular a responsabilidade cidadã dos nossos consultores e fomentar uma cultura de colaboração.”

Ainda de acordo com a fabricante de cosméticos, seus consultores “se identificam com os valores da empresa e confiam na marca e na qualidade de seus produtos”.

Fonte: Folha de São Paulo